<< voltar



Adeus a um comunista


Com a morte de David Capistrano da Costa Filho, o país perdeu mais do que um grande sanitarista e homem público. Chegou ao final a trajetória de um dirigente político que dedicou sua vida, com talento e abnegação, ao sonho revolucionário que marcou o século.


Breno Altman*



A câmara funerária estava repleta de amigos, companheiros e populares que encerravam uma caminhada de três quilômetros. O fardo da tristeza misturava-se com o cansaço físico. As pessoas saíram da Prefeitura de Santos, onde o corpo tinha sido velado durante a noite, quando os sinos das igrejas anunciavam onze horas. O carro de bombeiros seguia na frente, transportando o caixão recoberto com a bandeira do Partido dos Trabalhadores. Nas primeiras fileiras estavam os familiares, acompanhados por Lula, José Dirceu e outros dirigentes partidários, além de José Serra, ministro da Saúde. Quarenta minutos depois o cortejo chegou ao Cemitério Memorial. A multidão aplaudia sem cessar a passagem do esquife pelos corredores que levariam ao local das últimas homenagens. O ataúde foi finalmente depositado em uma plataforma elevatória, com a foto do pai desaparecido recostada sobre a madeira. O padre rezou salmos de consolação. Um velho camarada falou da história de luta. O ministro enalteceu os feitos do guerreiro da saúde pública. O presidente do PT disse o derradeiro adeus. Depois, um breve silêncio. Às 12h45 os acordes da Internacional foram entoados enquanto o corpo lentamente baixava para os procedimentos de sepultura. Muitos cantavam o hino dos revolucionários com os punhos erguidos e lágrimas nos olhos. Estava sendo enterrado David Capistrano da Costa Filho, histórico militante da esquerda brasileira, falecido no dia 10 de novembro. Aos 52 anos, sucumbira ao fracasso de um transplante de fígado a que fora submetido no início de outubro.

O ex-prefeito de Santos, renomado sanitarista, era um caso raro entre os quadros políticos da nação, como um dos poucos líderes partidários e homens públicos que também se destacam por sua atividade profissional. Nos dias seguintes ao funeral, não faltaram vozes a lembrar seu papel especial na empreitada para fazer da saúde um direito inalienável de todos os cidadãos. Textos e discursos resgataram sua participação nessa batalha permanente, não apenas como incentivador de campanhas, mas também como criador de modelos que servem de referência por todo o país. O reconhecimento de suas contribuições nessa frente extravasou as fronteiras de seu partido e do campo progressista. Durante trinta anos o médico David Capistrano, tão insolente com a própria saúde, brigou para fazer desse tema uma prioridade nacional. Ao morrer deixou um precioso legado de idéias e exemplos para melhorar a qualidade de vida e a longevidade de seus compatriotas. O mais impressionante é que, para ele, a atividade sanitária tinha uma importância secundária. No fundo, era tão somente uma das armas do alforje iluminista que carregava nos ombros, talvez a que manejasse com maior destreza. Todos os seus afazeres estavam obstinadamente subordinados à estratégia da revolução social e deviam servir para ajudar a criar uma força política capaz de tomar o céu de assalto. Essa maneira de pensar estava inscrita no código genético de sua história pessoal.

Pernambucano de Recife, David era filho de histórico líder comunista, também chamado David, um militar da Aeronáutica que participou da insurreição nacional-libertadora de 1935, das Brigadas Internacionais na Guerra Civil da Espanha (1936-39) e da resistência francesa contra a ocupação nazista (1940-45). Membro do Comitê Central do PCB, foi preso em março de 1974 na fronteira com o Uruguai. Está desaparecido desde então. Mas David, o filho, pode conviver durante quase toda a juventude com as experiências vividas pelos pais - sua mãe, a paraibana Maria Augusta, hoje com 82 anos, também era militante comunista. No início dos anos sessenta, quando começou a participar das lutas políticas, seu estado natal emergia como o principal laboratório dos projetos de esquerda. Miguel Arraes vencera as eleições para governador em 1962. As ligas e sindicatos camponeses espalhavam-se pelo interior. A ebulição social e cultural tomava conta da capital. A orientação conduzida pela seção local dos comunistas, destinada a construir uma coligação duradoura das correntes de esquerda, fazia de Pernambuco um dos teatros de operações mais destacados no processo que desembocaria no golpe militar de 1964.

A direção nacional do PCB não tinha simpatias por essa conduta. A análise predominante caracterizava que o bloco político a ser formado deveria abraçar os setores nacionais da burguesia e criticava os riscos de ruptura desse leque de forças se os comunistas apostassem na radicalização dos embates sociais e na conquista de uma função hegemônica para o partido proletário. Uma das discordâncias mais sensíveis entre os comunistas pernambucanos e o comando partidário concentrava-se na linha militar. Quando já era nítido que os conservadores conspiravam contra o governo de João Goulart, o secretário-geral Luiz Carlos Prestes recomendou que eventuais contra-medidas deveriam estar a cargo do aparato militar da Presidência. A gente de David Capistrano e Gregório Bezerra, embora evitando manobras abertamente dissidentes, articulava um plano de combate sustentado na distribuição de armas para as organizações populares. Os ferros jamais chegaram, apesar das promessas do governo. O Partido Comunista, presa das ilusões com os esquemas de aliança e os arranjos institucionais, acabou por sofrer uma amarga derrota, incapaz de impulsionar qualquer movimento de resistência à sedição dos generais.

David filho participou dos protestos nas ruas de Recife contra a quartelada de abril. Já era, aos quinze anos, um ativista entre os estudantes secundários. Assistiu impotente, no dia do golpe, o assassinato de seu amigo Jonas José de Albuquerque Barros, atingido por tiros de fuzil durante uma passeata de jovens desarmados. A rápida consolidação do regime militar dispersou a família Capistrano. O pai mergulhou na clandestinidade. O filho caiu preso e ficou detido em um quartel do exército durante três meses. A mãe e as duas irmãs fugiram para o Rio de Janeiro, também o destino de David quando saiu da cadeia. Sua mente vasculhava por uma resposta ao desastre. Chegou a se afastar do partido e estabelecer, entre 1966 e 1967, relações com a Corrente Revolucionária, uma dissidência chefiada por Mário Alves e Apolônio de Carvalho, depois rebatizada de PCBR, que criticava o pacifismo da maioria do comitê central e a subordinação de sua política às frações pretensamente nacionalistas e democráticas das classes dominantes. O tema da hegemonia começava a ocupar um lugar central em seu raciocínio.

A proximidade estratégica com os dissidentes, no entanto, esbarrou em uma discordância profunda com a tática que esses propunham para enfrentar a ditadura. A centralidade da luta armada, pensava, era um erro grosseiro. Mas esse foi o caminho seguido por muitos de seus companheiros. David, então, retorna ao velho partido e integra-se ao setor universitário, bastante esfacelado depois de sucessivas divisões internas. Seu empenho reforça uma orientação que propugnava o aproveitamento dos espaços institucionais ainda existentes, a mobilização social como o terreno privilegiado da política e a construção de uma ampla aliança das forças antiditatoriais. Aplaudiu a publicação de um documento assinado por João Guilherme Vargas Netto, membro do comitê estadual da época, cujo título ficou célebre nas rodas comunistas: "Nem capitulação nem aventura." Criticava o imobilismo dos que imaginavam colocar a cabeça debaixo da terra até a tempestade passar, mas tampouco aceitava deslocar a luta de resistência para o terreno do enfrentamento direto contra as Forças Armadas. Os dissidentes imaginavam, a partir do privilégio ao confronto militar, derrubar a ditadura. O PCB calculava a possibilidade de fazer confluir as lutas de massa com as contradições internas do regime, forçando seu isolamento e substituição. David Capistrano Filho abraçou essa via com entusiasmo e dedicação. Sua permanência no Rio de Janeiro, porém, tornou-se inviável a partir de 1974. O cerco se apertava sobre os comunistas e os serviços de segurança tinham seu nome na mira. David decide, então, mudar-se para São Paulo. Mas não escapa da onda repressiva que praticamente destruiria o PCB. Preso no final de 1975, estabelece na cadeia as relações com o grupo que estaria a seu lado no esforço para reconstruir a seção paulista da organização. Aos 28 anos, em 1976, era reconhecido como o principal dirigente comunista no estado e seria o secretário político do comitê estadual até julho de 1983. Seu empenho na renovação do partido buscava recuperar as experiências abortadas pelo golpe militar e retirá-lo da condição residual a que estava condenado apesar do aparente acerto de sua política. A esquerda armada estava derrotada. O ressurgimento do movimento operário e as vitórias eleitorais da oposição, por outro lado, sinalizavam o esgotamento do regime, tal como havia sido prognosticado pelas teses comunistas. O partido de Prestes, no entanto, ainda pagando as contas da desmoralização sofrida em 1964 e das quedas que ceifaram a vida de muitos dos seus dirigentes, não era um protagonista no novo ciclo de ascensão das forças progressistas inaugurado pelas greves de São Bernardo a partir de 1978.

Talvez apenas no início da década de oitenta David e seus colaboradores mais próximos tenham começado a aceitar que o PCB, de fato, vivia uma situação terminal. A ironia é que a crise do partido atingia seu ponto mais profundo quando as variáveis de sua tática comportavam-se todas positivamente e a ditadura tinha os dias contados. Quase vinte anos depois, o médico pernambucano usaria uma frase que poderia servir de axioma à compreensão do declínio pecebista: "Nem sempre o que dá certo é certo." A verdade é que a orientação do comitê central, privilegiando a intervenção sobre os conflitos entre os distintos grupos do bloco oligárquico-burguês, significava uma renúncia branca à hegemonia de esquerda no processo de transição e à própria identidade classista dos trabalhadores. David lança-se no combate contra essa concepção até que não sobre outro caminho além da ruptura definitiva com o PCB. O marco dessa separação leva a data de 21 de julho de 1983, quando ocorre a primeira greve geral desde a caída de João Goulart. O comitê estadual não aceita a posição da direção nacional e joga suas forças no sucesso da mobilização. A resposta do comitê central é o afastamento da maioria dos integrantes da executiva paulista. O sacrifício que significava esse divórcio longamente amadurecido, segundo vários especialistas, pode ter sido uma das raízes da leucemia que acometeu David naqueles anos.

Os comunistas dissidentes de São Paulo fundam, então, o jornal "A Esquerda" e iniciam uma virada que culminaria na filiação ao Partido dos Trabalhadores em 1986. Nem todos os companheiros de jornada seguem, dessa feita, os passos do ex-secretário político. Mas David percebe, nessa opção, uma trilha que permitia fundir amplitude tática e estratégia de hegemonia, generosidade política e identidade de esquerda, orientação atilada e força social. O terreno do encontro foi a campanha das diretas e o boicote ao colégio eleitoral. Naqueles tempos bicudos, quando a crise do socialismo já batia às portas, viu no PT a trincheira onde todos os revolucionários deveriam estar. Os últimos quinze anos de sua vida foram empenhados na construção desse projeto.

Não foi uma escolha fácil. Os pilares do partido de Lula - o novo sindicalismo, o catolicismo libertador, a intelectualidade progressista e os sobreviventes da esquerda armada - eram de outro álbum de família. Nunca tinham tido ou há muito haviam perdido os laços com o campo internacional formado a partir da revolução russa e da tradição bolchevique. Muitos de seus integrantes eram abertamente hostis àquela experiência. David, apesar de uma atitude sempre independente, sentia-se e se declarava um filho da mais importante corrente revolucionária que a história conheceu. Também eram sensíveis as diferenças sobre a valorização da política, o tipo de organização e o método de trabalho. Mas o processo de integração em uma casa comum era alentado pela vontade de construir um instrumento que representasse a alternativa de poder dos trabalhadores da cidade e do campo.

O ex-dirigente comunista não recusava tarefas. Eleito para o diretório regional de São Paulo, dirigiu o Jornal do PT e coordenou a campanha vitoriosa de Telma de Souza para a Prefeitura de Santos, em 1988. Acabou nomeado secretário da Saúde no governo petista e, depois, chefe de gabinete da prefeita. Seu nome foi uma indicação natural e vencedora para a sucessão realizada em 1992. Abraçou a missão administrativa sem abandonar as funções partidárias. Lutava cada vez com mais empenho, na batalha das idéias, para impedir que o PT embarcasse na normalização da esquerda - um processo político que vicejava em todo o planeta após o colapso soviético. Não aceitava a hipótese de ver o partido transformado na peça canhota do sistema liberal, em uma máquina eleitoral que trocasse seus compromissos originais por cotas de poder cujo preço fosse o respeito às fronteiras determinadas pela hegemonia burguesa. Essa postura não implicava em sectarismo. David era daqueles que se aliava até com o demônio para lograr um objetivo que interessasse às forças de esquerda, mas insistia em subordinar essas operações táticas ao reforço do papel dirigente dos trabalhadores. Às vezes parecia errático em suas atitudes e definições, mas não se preocupava com essa aparência, chegava mesmo à alimentá-la. Dizia sempre que era um adepto da fórmula que receitava flexibilidade tática e rigor estratégico. Não hesitava em apontar que a cultura petista, impregnada da preferência pelos valores morais aos políticos, facilitava a inversão dos termos da equação.

Nos últimos anos, desde que deixara a Prefeitura de Santos, vivia afastado da vida partidária. Sem filiação às tendências internas desde 1996, não foi reconduzido ao diretório nacional, revelando as limitações de um funcionamento marcado pela federação de grupos. Um balanço mais apurado talvez venha a mostrar que David Capistrano Filho, um dos mais talentosos e audazes quadros da esquerda brasileira, foi menos aproveitado pelo PT do que deveria. Um político de estilo agressivo, avesso às conciliações, sua presença causava, com alguma freqüência, desconforto e inquietação. Mas na hora da ausência definitiva, o sentimento de vazio arrebatou até seus litigantes mais costumeiros. Afinal, morrera um grande brasileiro. Morrera um grande comunista. Adeus, David, velho amigo e camarada.


*Jornalista